Thursday, July 12, 2007

Desencantando o encantamento

Encantaste-me na meninice, seduziste-me na juventude, mas não conseguiste prender-me ou, covardemente, fugi de teu encanto.
Frustrei-me.
Hoje sinto-te a falta em todas as tuas manifestações, seja através do desenho, do jogo das formas e cores, da música ou da palavra escrita.
Gostaria de ter me dedicado a ti, viver de ti, por ti, mas não posso mudar o que passou.
Volto ao contato íntimo com a música através de meu filho mais novo por suas aulas de cavaquinho. Volto com o complemento do samba e chorinho, seu ritmo com o pandeiro.
Sinto fome de arte, tenho ímpetos de abraçá-la por inteiro. Quero tocar, desenhar, pintar, compor. Não é lá muito fácil, vou fazê-lo apesar de tudo.
Quero mostrar-me a mim e a todos como artista, libertar o espírito criador que adormeceu. Quero viver a música, não apenas ouvi-la, quero escrever e não simplesmente ler. Quero praticar arte, não admirá-la apenas.
Quero criar um novo tempo de realizações prazerosas através da arte.

Doce Nhanhâ

Querida vovó, tua lembrança, trago-a no peito com doce saudade e a certeza de que fostes no exato final de tua missão.
Fostes a operária do amor dando-te, por inteiro, a marido, filhos, netos e, com ternura, cativastes a todos. Merecias um final mais suave, menos doloroso, menos dependente, mas, talvez ele tenha sido a nossa oportunidade de darmo-nos a ti, numa parcela ínfima se comparada a tua, com amor, às vezes impaciente, reconheço, cuidando para suavizar-te a dor na partida.
Tua ida doeu-me muito, mas, confesso, doeu-me menos do que vê-la depender inerte e apática daqueles a quem tanto se deu, tão ativa e intensamente.
Agradeço a oportunidade que tive para cuidar-te e amparar-te nos dias derradeiros na tentativa de amenizar tua caminhada final.
Chego a duvidar da existência de um Deus que permitiu que a minha formidável velhinha tivesse de sofrer tanto se, durante toda a vida, amou e resignou-se nas perdas dos entes mais queridos. Fostes para todos o maravilhoso exemplo de amor vivo.
O carinho com que falavas do teu companheiro me comovia e me comoverá sempre. Foi um amor lindo!
Teu parceiro que foi, a um só tempo, pai e irmão, além de marido, creio que te receberá com muito amor.
Vovó, perdoa a impaciência deste teu neto que, muitas vezes, não compreendeu tuas angústias e tua luta final.
Quando puderes, lembra-te deste teu neto e ajuda-o a melhor caminhar na vida.
Abençoa, mais uma vez aquele que tanto te ama.


Betofreire
28/03/1982